Por Davidson Nilson Mendes Negrão e Rafaela Oliveira da Silva Sá
O PROBLEMA
Desde o princípio das sociedades, várias ferramentas de auxílio para os humanos foram desenvolvidas, sendo que, a maior parte delas são para dar funcionalidades adicionais para as pessoas. Basicamente, qualquer ferramenta que auxilia ou permite que o ser humano realize uma determinada tarefa deve ser entendida como um auxílio para uma deficiência funcional, visto que não poderíamos realizar a tarefa com a mesma eficiência sem aquele auxílio. Assim, um garfo é uma ferramenta que nos permite comer de forma mais fácil, assim como uma cadeira de rodas permite às pessoas com dificuldade motoras a se locomover mais facilmente.
O Censo de 2010 aponta que 46 milhões de brasileiros, cerca de 24% da população, declararam ter algum grau de dificuldade em enxergar, ouvir, caminhar, subir degraus ou possuem deficiência mental/intelectual. Se considerado apenas as pessoas com grande dificuldade ou perda total de alguma habilidade, além dos que declararam ter deficiência mental ou intelectual, são mais de 12,5 milhões de brasileiros com deficiência, o que corresponde a 6,7% da população. O gráfico a seguir destaca essa relação.
Todavia, a sociedade brasileira ainda enfrenta um sério problema de capacitismo, isto é, tem dificuldades de entender a importância da inclusão de pessoas com deficiência e, muitas vezes, enxergam elas como um problema ou fardo, o que impacta diretamente no desenvolvimento de tecnologias e políticas públicas direcionadas para esse público.
Uma parte disso se deve ao olhar da sociedade para as pessoas com deficiência como pessoas inferiores ou incompletas, em um desentendimento de que a pessoa sem deficiência também não é um ser “completo”. Por exemplo, se os seres humanos tivessem uma cauda, assim como os macacos, aqueles que não nascessem com elas seriam vistos como pessoas com deficiência e, para além disso, toda a nossa sociedade teria sido moldada para pessoas com cauda.
São dessas discussões e problemáticas em que se fundamenta a importância de se auxiliar e incluir esses indivíduos na sociedade, pois se o mundo que montamos não está preparado para dar a essas pessoas a mesma qualidade de vida que a de todos os outros, isso é um problema dessa sociedade e não da pessoa com deficiência.
AS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS
Uma solução para a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade são as ferramentas de tecnologia assistiva (TA). Essas ferramentas são usadas justamente para tentar devolver ou aproximar as habilidades funcionais dessas pessoas às das pessoas sem deficiência. A fisioterapeuta Rita Bersch diz que “A TA deve ser entendida como um auxílio que promoverá a ampliação de uma habilidade funcional deficitária ou possibilitará a realização da função desejada e que se encontra impedida por circunstância de deficiência ou pelo envelhecimento” (BERSCH, p. 2, 2017).
O conceito de tecnologia assistiva só começou a ser importado para o Brasil entre 2006 e 2007, onde o Comitê de Ajudas Técnicas definiu o termo como:
“Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social”. (BRASIL, 2007).
Outras definições internacionais sobre o tema também foram incluídas, como a categorização das TAs, que se dividem em 12 classes:
- Auxílio para a vida diária e prática;
- Comunicação aumentativa e/ou alternativa;
- Recursos de acessibilidade ao computador;
- Sistemas de controle de ambiente;
- Projetos arquitetônicos para acessibilidade;
- Órteses e próteses;
- Adequação de postura;
- Auxílio de mobilidade;
- Auxílios para qualificação da habilidade visual e recursos que ampliam a informação para pessoas com baixa visão ou cegas;
- Auxílios para ampliação da habilidade auditiva e para autonomia na comunicação de pessoas com déficit auditivo, surdez ou surdocegueira;
- Adequação em veículos e em ambientes de acesso ao veículo;
- Esporte e lazer.
(BRASIL, 2012).
Tais tecnologias são desenvolvidas com o objetivo de tornar a vida de pessoas mais fácil e agradável. A partir disso, algumas alternativas tecnológicas foram criadas pensando na equidade de acesso das pessoas com deficiência às novas tecnologias, como:
Leitores de tela e ampliadores de imagem
Uma das mais bem sucedidas tecnologias assistivas são os leitores de tela, que basicamente fazem o trabalho de transcrever para linguagem falada o conteúdo textual presente na tela do dispositivo eletrônico, como computadores, celulares e tablets. Ele é pensado para pessoas com baixa visão ou cegueira completa e tem sido amplamente utilizado pois cumpre muito bem a função de transmitir para pessoa cega as informações presentes na página.
O maior problema são os conteúdos não textuais que têm importância para o entendimento do conteúdo, como imagens e gráficos. Porém, esse problema não é causado pela tecnologia em si, mas pela falta de preocupação dos disponibilizadores dos conteúdos de colocar descrições detalhadas desses conteúdos, pois os leitores de tela são preparados para ler imagens a partir da descrição “alt” delas, incluída nos códigos-fonte do site ou app, mas muitas páginas não cumprem com esse bom hábito.
Mas a solução para esse problema já começou a aparecer, visto que iniciativas como #PraCegoVer seguido da descrição do conteúdo têm se tornado cada vez mais populares. Além disso, se tem dado maior atenção também a essas pautas dentro da área de tecnologia (como é o caso deste artigo) e cabe aos profissionais de TI melhorarem a esta tecnologia.
Hand Talk
Hand Talk é um aplicativo nacional de comunicação alternativa que tem como objetivo realizar a tradução de texto e voz para Libras (Língua Brasileira de Sinais) de modo online, além de oferecer extensão para os sites, tornando todas as informações digitais acessíveis para as pessoas com deficiência auditiva.
A ferramenta possui dois intérpretes digitais, os avatares Hugo e Maya, que podem ser ajustados de acordo com o usuário e desenvolvem os sinais e gestos para facilitar a comunicação com as pessoas surdas ou com dificuldade auditiva. O aplicativo também disponibiliza uma sessão com vídeos educativos e uma área de dicionário.
Be My Eyes
O Be My Eyes conecta voluntários videntes (pessoas que enxergam) com pessoas com deficiência visual que necessitam de auxílio para executar uma tarefa cotidiana, como saber a cor da camisa que estão comprando em uma loja, descobrir a marca ou a validade de um produto no supermercado, realizar uma compra online, entre outras atividades, tornando tais atividades mais acessíveis.
O Aplicativo se encaixa na categoria de auxílio para a vida diária e prática e também é um grande exemplo de como as soluções para as dificuldades vividas por pessoas com deficiência muitas vezes são simples, basta que se tenha um olhar sensível o suficiente para enxergá-la.
Bengala Eletrônica
As bengalas eletrônicas foram desenvolvidas com o objetivo de auxiliar as pessoas com dificuldades motoras a se movimentar com mais facilidade e com mais segurança em ambientes, como as grandes cidades, que possuem obstáculos e podem gerar um impasse na locomoção. Existem vários tipos de bengalas eletrônicas, uma delas foi criada para ajudar pessoas com deficiência visual, que possui dois sensores que avisam quando há um obstáculo a um metro de distância. Essa ferramenta possui um microcontrolador que processa os dados sonares e aciona os motores, de tal maneira que aciona o usuário e facilita todo seu processo de movimentação. Outro modelo, também de bengala eletrônica é capaz de emitir alertas sonoros e de vibração em relação aos obstáculos em altura detectados através de um sensor ultrassônico, contribuindo, principalmente, para a locomoção em centros urbanos.
Pernas Robóticas
Estas estão se tornando cada vez mais comuns e foram desenvolvidas para ajudar pessoas sem pernas ou que não conseguem movê-las a se locomoverem, assim elas podem até subir e descer escadas mais facilmente e, logo, podem realizar tarefas do cotidiano. Elas são da categoria de órteses e próteses, mas se encaixam também em outras categorias, como Auxílio para a vida diária e prática, auxílio de mobilidade e, a depender do uso, até mesmo esporte e lazer.
STAND TABLE
É um aparelho das categorias de auxílio de mobilidade e adequação de postura que permite que uma pessoa com deficiência motora se locomova na posição ereta (de pé), saindo da cadeira de rodas. Nessa posição, a pessoa melhora a circulação e previne o inchaço das pernas.
Entretanto, não são todas as pessoas com deficiência que possuem acesso a tais aparelhos, uma vez que os preços para se obter tais facilitadores não estão de acordo com a renda familiar, além de que muitas vezes esses aparelhos exigem manutenção e/ou troca para readaptação do aparelho ao corpo do usuário. A perna robótica, por exemplo, exige um investimento de US$150.000, o que a torna inviável para muitos adquirirem. O problema se agrava quando o aparelho é fruto de doações, pois é ainda mais baixa a possibilidade de troca do produto por um que se adapte melhor.
Além disso, outros fatores acabam por interferir negativamente na experiência dos usuários, porque mesmo quando os mesmos têm poder de compra para adquirir tais aparelhos, nem sempre estes são fortemente adaptados às necessidades da pessoa.
REPRESENTATIVIDADE NA PRODUÇÃO DAS TECNOLOGIAS
A exclusão das pessoas com deficiência na sociedade permanece até hoje. Isso faz com que muitas coisas sejam negadas para estas pessoas, como o acesso à educação, ao lazer, à locomoção e até mesmo às próprias tecnologias assistivas.
Um desses grandes problemas enfrentados é fruto da indústria, visto que essas tecnologias precisam ser transformadas em produtos que, na maioria dos casos, são padronizados e, por isso, não têm uma grande capacidade de se adaptar aos mais diversos corpos e deficiências.
A Ligia Braccialli (2017) enfatiza que esses e outros problemas já foram apontados em diversos estudos, dentre eles destaca-se:
- Falta de participação do usuário durante a escolha do dispositivo, o que pode causar problemas com adaptações do usuário ou que o produto não se encaixe na necessidade do mesmo;
- Desempenho ineficaz do produto, que muitas vezes não funciona como o esperado e/ou não possuem uma boa durabilidade;
- Mudança das necessidades do usuário, visto que o crescimento, mudanças ou evolução da situação da deficiência podem levar à desadequação entre o produto e o usuário;
- Falta de treinamento do usuário para usar o produto, com o agravante que muitos deles são de difícil manipulação, seja por peso, complexidade ou aparência;
- Falta de motivação para o usuário, ainda mais porque existe uma problemática social envolvendo o uso do dispositivo em público, mudanças estéticas causadas pelo uso deles, entre outras coisas.
Certamente, é muito importante continuar desenvolvendo cada vez mais ferramentas assistivas, pois mesmo com todos os problemas elas ainda contribuem muito para a autonomia dos usuários. Todavia, o modo como elas têm se desenvolvido não é compatível com as possibilidades tecnológicas que temos atualmente, sendo que, com mais cuidado e atenção na hora de criar essas tecnologias, elas poderiam ser muito mais úteis na vida dos usuários.
Ou seja, se fosse dado às tecnologias assistivas a mesma dedicação e cuidado que se é dado para evoluir cada vez mais os eletrônicos, como os celulares e computadores, muito provavelmente esses problemas não seriam tão sérios quanto têm se apresentado. Uma das consequências dos problemas de adaptação é que cerca de 30% dos aparelhos adquiridos são deixados de lado entre os primeiros cinco anos de uso, o que evidencia o impacto da falta de participação dos usuários no desenvolvimento dos produtos.
Uma das áreas mais atingidas por esses e outros problemas é a educação. Segundo o Censo da educação básica 2020, o Brasil tem cerca de 1,3 milhão de alunos com deficiência matriculados nas redes públicas e privadas. Entretanto, a grande maioria dessas escolas não oferecem a estrutura necessária para suprir as necessidades dos alunos com deficiência, dado que mais da metade deles estão em salas de aula comuns sem Atendimento Educacional Especializado, como mostra o gráfico a seguir:
Isso afeta diretamente a vida escolar dos alunos e faz com que muitos abandonem a escola. O Censo da educação básica de 2020 indica que quase 70% dos alunos matriculados no ensino público ou privado são do ensino fundamental, poucos alunos continuam para o ensino médio e ainda menos chegam ao ensino superior. A solução encontrada por muitos pais para que os filhos tenham uma boa assistência escolar é a rede privada de ensino, que contempla o maior número de salas de aula adaptadas que, apesar de fazer um papel segregatório, oferecem uma experiência melhor de ensino que nenhuma assistência.
A conexão entre a criação de novas tecnologias assistivas e o ensino se dá pelo caráter libertador da educação e da representatividade necessária para se desenvolver mais dessas tecnologias com menos dos problemas apresentados anteriormente. Ao se negar para pessoas com deficiência uma boa educação, impede-se não somente que elas consigam uma vida mais estável, mas também que elas façam parte do próprio desenvolvimento. É de extrema importância que existam cada vez mais pessoas com deficiência desenvolvendo tecnologias assistivas, pois somente elas conseguem sentir com profunda riqueza de detalhes as dores e necessidades dos seus semelhantes.
Deste modo, mostra-se a importância de programas de incentivo e afirmação, como as cotas nas vagas universitárias, pois é ao chegar no nível superior que essas pessoas poderão ter mais ferramentas para mudar o mundo e, principalmente, melhorar a vida de outras pessoas com deficiência.
Assim, pode-se concluir que o desenvolvimento de tecnologias assistivas e de programas de inclusão e reparação social são essenciais na busca da equidade tanto no acesso das pessoas com deficiência às novas tecnologias quanto para que essas possam se apoderar da construção e evolução dessas tecnologias.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Resumo Técnico do Censo da Educação Básica 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/centrais-de-conteudo/acervo-linha-editorial/publicacoes-institucionais/estatisticas-e-indicadores-educacionais/resumo-tecnico-do-censo-da-educacao-basica-2020>. Acesso em: 28 out. 2021.
GLOBO. Crianças com deficiência: quando o futuro é hoje. Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com/Criancas/Desenvolvimento/noticia/2019/05/criancas-com-deficiencia-quando-o-futuro-e-hoje.html>. Acesso em: 28 out. 2021.
IBGE EDUCA. Pessoas com deficiência. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/20551-pessoas-com-deficiencia.html>. Acesso em: 28 out. 2021.
HIRATA, Giselle. Quais são as tecnologias para ajudar pessoas com deficiência? Super. Disponível em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-tecnologias-sao-desenvolvidas-para-ajudar-pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 29 Oct. 2021.
WHOW! INOVAÇÃO PARA NEGÓCIOS. O uso da tecnologia em prol da acessibilidade de deficientes. Whow! Disponível em: <https://www.whow.com.br/tecnologia/o-uso-da-tecnologia-em-prol-da-acessibilidade-de-deficientes/>. Acesso em: 29 Oct. 2021.