Elementos da teoria da sociedade do risco - Ulrich Beck

"Retorno a la sociedad del riesgo: teoría, política, críticas y programas de investigación", pp. 211-242, de
BECK, U. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI Editores, 2002. ISBN 84-323-1083-2 (excertos do texto)

O discurso dos riscos começa onde termina nossa confiança na segurança e deixa de ser relevante quando ocorre a catástrofe que era apenas um potencial. O conceito de risco, portanto, caracteriza-se como um peculiar estado intermediário entre a segurança e a destruição. O conceito de risco, quando se considera cientificamente (risco = acidente x probabilidade), adota a forma do cálculo de probabilidades que, como sabemos, nunca pode excluir o pior caso possível.

Utilizando uma metáfora católica, uma sociedade que concebe a si mesma como uma sociedade do risco está na posição do pecador que confessa seus pecados a fim de poder contemplar a possibilidade e desejo de uma vida "melhor", em harmonia com a natureza e com a consciência do mundo.

O que permite que as proposições sobre riscos se desenvolvam em avaliações intermediárias entre a "virtualidade real" e um futuro provável  - que, apesar de tudo, motivam a ação presente? Esta tensão política deriva-se fundamentalmente de duas fontes: a primeira refere-se à importância cultural do valor universal da sobrevivência. Assim, Thomas Hobbes, o teórico conservador do Estado e da sociedade, reconheceu como um direito do cidadão o direito à resistência quando o Estado ameaça sua vida ou a sobrevivência (de maneira bem característica, utiliza frases como "ar envenenado e alimentos envenenados", que parecem antecipar os temas ecológicos neste contexto). A segunda fonte está vinculada à atribuição de perigos aos produtores e garantidores do ordem social (na Economia, Política, Direito e Ciência). Isto é, a suspeita de que quem ameaça o bem-estar público e os responsáveis por protegê-lo sejam, talvez, os mesmos.

Em sua fase incipiente - difícil de localizar -, os riscos e a percepção dos mesmos são "conseqüências não desejadas" da lógica de controle que domina a modernidade. A construção da segurança e o controle que dominou o pensamento social e a ação política na primeira etapa da modernidade está se tornando fictícia na sociedade do risco global.

Na medida em que a natureza se industrializa e seguir as tradições passa a ser apenas opcional, surgem novos tipos de incertezas que Anthony Giddens e eu denominamos "incertezas produzidas". Estes tipos de riscos e perigos internos pressupõem uma tripla participação de experientes cientistas no papel de produtores, analistas e beneficiários das definições de riscos. Nestas condições, muitas tentativas de limitar e controlar os riscos convertem-se uma ampliação das incertezas e dos perigos.

Os riscos unicamente sugerem não o que há de se fazer, senão o que dever-se-ia fazer. Na medida em que os riscos se inserem no contexto até de como se percebe o mundo, o alarme que provoca cria uma atmosfera de impotência e paralisação. O não fazer nada, ao mesmo tempo de se exigir muito para mudar, faz surgir no mundo uma série de riscos incontroláveis. Poderíamos denominar isso de a armadilha do risco, que é em aquilo em que o mundo pode se converter na forma preceptiva do risco. Não existem receitas sobre como atuar na armadilha do risco, mas existem reações culturais sumamente antitéticas (dentro e fora da Europa). Em lugares e tempos diferentes, a indiferença e a agitação alarmada freqüentemente tendem a se alternar de forma abrupta e radical.

Os novos tipos de riscos são simultaneamente locais e globais, ou "*glocais". Assim, foi a experiência fundamental de que os perigos ecológicos "desconhecem as fronteiras", que são universalizados pelo ar, o vento, o água e as correntes alimentares, o que justificou o movimento ecologista global e motivou a discussão dos riscos globais. As ameaças globais fazem que o fundamento da lógica dos riscos sejam minados e invalidados. Isso dá lugar a perigos de difícil controle ao invés de riscos calculáveis. Portanto, não há planos com medidas paliativas no caso em que ocorra a pior possibilidade imaginável. No mundo da sociedade do risco global, a lógica do controle se colapsa por dentro.

Uma característica da sociedade do risco global é uma metamorfose do perigo que é difícil delinear ou controlar: os mercados se colapsam e existem carestias em meio à superprodução. Os tratamentos médicos fracassam. As bases da racionalidade econômica tremem. Os governantes vêem-se obrigados a se demitir. As normas da vida quotidiana que se dão por aceitas viram de ponta-cabeça. Quase todo mundo fica indefeso frente às ameaças da natureza - tal como esta foi recriada pela industrialização. Os perigos fazem parte integrante de hábitos normais de consumo. E, apesar de tudo, os riscos são e seguem sendo essencialmente dependentes do conhecimento e se mantêm vinculados à percepção cultural, podendo se manifestar com alarme, tolerância ou cinismo.

O impacto do modo de vida industrial está tanto espacial como temporalmente aberto e tende a estender-se, por um lado, para todo o globo, e por outro, à estratosfera e ao universo. A radiação, os compostos químicos sintéticos e os organismos geneticamente modificados são exemplos relevantes. Os perigos ecológicos contemporâneos, como a destruição do ozônio, os danos aos sistemas reprodutores e imunológicos das espécies ou a doença da vaca louca só se tornaram visíveis anos depois, quando seus impactos já eram perceptíveis.  Outros perigos se exteriorizam como sintomas para depois de se combinar para formar uma massa crítica. Isto é, o impacto está temporariamente aberto e só resulta perceptível como sintomático (e por tanto cognoscível) depois que se tornar um fenômeno "cultural" visível em algum tempo e em algum lugar.

Nossa concepção de uma separação de mundos entre natureza e cultura, intimamente unida ao pensamento modernista, não consegue reconhecer que construímos, atuamos e vivemos no mundo artificial e construído da civilização cujas características se acham para além destas distinções, que seguem dominando nosso pensamento. A eliminação das fronteiras entre estes âmbitos não se deve apenas à industrialização da natureza e à cultura, senão também aos perigos que ameaçam por igual a seres humanos, animais e plantas. Pensamos no buraco na camada de ozônio, na contaminação ou nos alarmes alimentares: a natureza está inevitavelmente contaminada pela atividade humana. Isto é, o perigo comum tem um efeito nivelador que apaga algumas das fronteiras cuidadosamente construídas entre classes sociais, nações, seres humanos e o resto da natureza. Enfrentada à ameaça, as pessoas experimentam que respiram como as plantas e que dependem da água para viver tanto quanto um peixe. A ameaça tóxica faz-lhe sentir que participa com seu corpo nas coisas - "um processo metabólico com consciência e moralidade" - e, conseqüentemente, que pode sofrer erosão como as pedras e as árvores sob a chuva ácida.

Uma sociedade que percebe a si mesma como sociedade do risco se converte em reflexiva. Isto é, os fundamentos de sua atividade e seus objetivos se convertem em objeto de controvérsias científicas e políticas públicas. Por tanto, a sociedade do risco e a teoria da sociedade do risco incorporam uma utopia: a de uma modernidade responsável, a utopia de outra modernidade, de muitas modernidades a inventar e experimentar em diferentes culturas e partes do mundo.


Irresponsabilidade organizada e o jogo do poder das definições do risco

A volta à filosofia teórica e à política da modernidade industrial na era do risco global está condenada ao fracasso. As teorias e políticas ortodoxas seguem unidas a noções de progresso e valoração da mudança tecnológica. Como tais, perpetuam a crença na ilusão de que os perigos ambientais que enfrentamos hoje podem ainda ser equacionados dentro dos modelos científicos, do século dezoito, de avaliação de riscos e hipóteses industriais sobre perigo e segurança. Simultaneamente, mantém-se a ilusão de que as instituições em desintegração da modernidade industrial – famílias nucleares, mercados trabalhistas estáveis, papéis de gênero separados, classes sociais, Estados-nação – podem se sustentar e se reforçar face às ondas de modernização reflexiva que inundam Ocidente.

O conceito de "irresponsabilidade organizada" contribui para explicar como e porquê as instituições da sociedade moderna têm que reconhecer inevitavelmente a realidade da catástrofe enquanto, simultaneamente, negam sua existência, escondendo suas origens e excluindo a compensação ou o controle.

Na sociedade do risco, devemos conceber relações de definição  por referência a quatro grandes grupos de perguntas:

1. Quem deve definir e determinar a inocuidade de produtos, o perigo e os riscos? Quem tem a responsabilidade: quem gera os riscos, quem se beneficia, quem se vê potencialmente afetado?
2. Que tipo de conhecimento ou desconhecimento sobre as causas, dimensões, atores, etcétera se acha implicado? A quem deve de se submeter as evidências e "provas"?
3. O que há que considerar como prova suficiente num mundo em que o conhecimento sobre os riscos ao meio-ambiente é necessariamente discutido e probabilista?
4. Quem deve decidir sobre a compensação pelos afetados, e como constituir formas adequadas de limitação, controle e regulação dos danos futuros?

Enfrentamos o paradoxo de que, ao mesmo tempo em que se percebe que as ameaças e os perigos são mais perigosos e mais óbvios, tornar-se cada vez mais difícil estabelecer provas, atribuições e indenizações por meios científicos, legais e políticos.

Em minha obra, a qualidade dos perigos é criada pelas contradições institucionais das sociedades do risco. Além disso, a sociedade do risco não se refere a uma "advertência distópica". Utilizo a metáfora da explosividade social do perigo para explicar os efeitos politizadores da (definição) dos conflitos de riscos. Exploro as formas em que o "potencial real" de perigos, riscos e incertezas fabricadas em grande escala desencadeiam uma dinâmica de mudança cultural e política que abala os fundamentos das burocracias estatais, desafia o predomínio da ciência e retifica as fronteiras e linhas de confronto da política contemporânea. Desta forma, o conjunto de perigos, entendidos como socialmente construídos e "quase sujeitos" fabricados, age um "ator" poderoso e incontrolável que deslegitima e desestabiliza as instituições estatais com responsabilidades e de segurança pública.

Os próprios perigos desbaratam as tentativas de controle das elites institucionais e dos especialistas. As "burocracias de avaliação de riscos" dispõem, como se vê, de procedimentos de negociação bastante desgastados. Utilizando a brecha entre o impacto e o conhecimento, os dados podem esconder, negar e serem distorcidos. Pode-se mobilizar contra-argumentos. Pode-se elevar os níveis máximos permissíveis de aceitação. Pode-se apresentar como vilão o erro humano em lugar do risco sistêmico. Contudo, nestas batalhas as vitórias são transitórias e a derrota é provável, ou ao menos possível, numa sociedade do risco global na qual as promessas de progresso e segurança são vazias e perderam sua capacidade de convencimento. A natureza dos perigos, que já não é vedada apenas aos cientistas e especialistas, é demonstrada em todas partes e para todos os que tenham o interesse de ver.

A sociedade do risco global e suas contradições políticas e culturais não podem ser explicadas nem entendidas em termos da gestão pré-moderna dos perigos e ameaças. Isso não supõe negar, naturalmente, que tanto políticos como técnicos especialistas possam aprender dos sumos sacerdotes de épocas anteriores como gestionar os demônios de perigos socialmente explosivos.

(tradução de Jorge Machado, revisada em 27 de março de 2012)